“O peso do mundo/ é o amor./ Sob o fardo/ da solidão,/ sob o fardo/ da insatisfação”. Poeta maior da Geração Beat, militante pacifista, homossexual, personalidade marcante, capaz de desviar os caminhos da poesia americana do séc. XX (este post é baseado no artigo Allen Ginsberg: poemas e os anos do último uivo) Um furacão poético, emblema de uma geração genuinamente revolucionária e iluminada, Allen Ginsberg foi não só foi o poeta estadunidense de maior prestígio da segunda metade do século passado: foi também um dos grandes rebeldes românticos e poetas anarquistas contemporâneos. Dezessete anos depois de sua morte, sua obra permanece e ainda anima leitores e, assim como a obra de Kerouac, cineastas.
Nascido em 1926 em Newark, no estado de Nova Jérsei, Ginsberg, em parceria com Kerouac, Burroughs, Ferlinghetti, Snyder e Corso promoveu, senão uma revolução, uma verdadeira revisão da linguagem e dos valores literários que, em seguida, iria se tornar um dos pilares da rebelde Geração Beat e dos movimentos da contracultura. Deste período, emergiram algumas obras de grande influência, como Howl and other poems (1956), Kaddish and other poems (1961), de Ginsberg, On the Road (1957), de Kerouac e Naked Lunch (1959), de Burroughs. Ginsberg faleceu no dia 5 de abril de 1997, em Nova York.
O Uivo, de Allen Ginsberg
Howl, um de seus livros mais conhecidos (o autor publicou mais de 20 livros), conquistou milhões de leitores. Publicado em 1956, renderia um processo por pornografia contra o escritor e seu editor um ano depois. O escândalo, associado ao impacto do lançamento de On the Road, ajudou a tornar mundialmente conhecida a Geração Beat e transformá-la numa espécie de mito moderno.
Para a época, mesmo obras inovadoras como as de Breton, Artaud e Michaux rendiam tiragens praticamente inexpressivas em comparação às obras de Ginsberg. Assim, ao tornar-se fenômeno editorial, Ginsberg também se tornou num ícone daquela rebelião, da criação literária, da conduta e do das relações sociais.
Um dos méritos de Ginsberg e Burroughs foi terem elaborado a ligação, a ponte, entre o modernismo anglo-americano, de Pound e William Carlos Williams, e a vanguarda francesa, principalmente o surrealismo. Em busca de uma visceral renovação literária, Ginsberg e Carl Solomon, foram internados em um hospício em 1948/49 e escreveram uma carta delirante para o surrealista Malcolm de Chazal, autor cuja obra Sens Plastique tinha acabado de ser publicada – a internação no hospício fora, segundo Ginsberg, essencial para a criação de Howl. Alguns discursos e ensaios de Ginsberg demonstram sua simpatia à vertente objetivista de Pound e Williams e do fluxo de consciência, de Gertrude Stein e Joyce, mostrando como seu trabalho com a prosódia é consistente e complexo.
Allen Ginsberg no cinema
Assim como aconteceu com On the Road, adaptado por Walter Salles (longa em que Allen Ginsberg também é retratado) para os cinemas, a obra de Ginsberg também ganhou as telonas. Citarei as duas mais recentes.
O primeiro filme foi Howl, de 2010, dirigido e adaptado por Rob Epstein e Jeffrey Friedman e estrelado por James Franco. O filme retrata o episódio em que a obra é levada a julgamento e reconta este momento utilizando três diferentes perspectivas: os tumultuados eventos da vida que levaram o jovem Allen Ginsberg a descobrir sua verdadeira voz como um artista, a reação da sociedade/público em relação à sua obra e uma exaltação que reflete a originalidade do poema Howl. As três histórias são entrelaçadas para contar o nascimento da contracultura americana e da Geração Beat, nos anos 50.
O segundo filme é o Kill Your Darlings (2013). Dirigido por John Krokidas, o filme não é uma adaptação, mas um drama biográfico sobre Allen Ginsberg. Estrelado por Daniel Radcliffe e Michael C. Hall, o filme gira em torno do assassinato de David Kammerer (Michael C. Hall), episódio que aproxima alguns dos poetas mais importantes da Geração Beat: Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William Burroughs.
O longa chegou a vencer, na categoria de melhor diretor, o prêmio do Palm Springs International Filme Festival e também foi indicado para o Grande Prêmio do Júri no Sundance Film Festival.
Poemas de Allen Ginsberg
Ficou curioso para conhecer a obra do autor? Selecionei alguns dos poemas que mais gosto e os disponibilizo abaixo (as traduções são da L&PM):
CANÇÃO
O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação
o peso
o peso que carregamos
é o amor.
Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano —
sai para fora do coração
ardendo de pureza —
pois o fardo da vida
é o amor,
mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.
Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor —
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
— não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:
o peso é demasiado
— deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.
Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho —
sim, sim,
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.
POEMA DE AMOR SOBRE UM TEMA DE WHITMAN
Entrarei silencioso no quarto de dormir e me deitarei entre noivo e noiva,
esses corpos caídos do céu esperando nus em sobressalto,
braços pousados sobre os olhos na escuridão,
afundarei minha cara em seus ombros e seios, respirarei sua pele
e acariciarei e beijarei a nuca e a boca e mostrarei seu traseiro,
pernas erguidas e dobradas para receber, caralho atormentado na escuridão, atacando
levantado do buraco até a cabeça pulsante
corpos entrelaçados nus e trêmulos, coxas quentes e nádegas enfiadas uma na outra,
e os olhos, olhos cintilando encantadores, abrindo-se em olhares e abandono,
e os gemidos do movimento, vozes, mãos no ar, mãos entre as coxas,
mãos na umidade de macios quadris, palpitante contração de ventres
até que o branco venha jorrar no turbilhão dos lençóis
e a noiva grite pedindo perdão e o noivo se cubra de lágrimas de paixão e compaixão
e eu me erga da cama saciado de últimos gestos íntimos e beijos de adeus —
tudo isso antes que a mente desperte, atrás das cortinas e portas fechadas da casa escurecida
cujos habitantes perambulam insatisfeitos pela noite,
fantasmas desnudos buscando-se no silêncio.
UIVO (trecho)
Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura,
morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca
de uma dose violenta de qualquer coisa,
“hipsters” com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato
celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando
sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis aparta-
mentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das
cidades contemplando jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram
anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados
das casas de cômodos,
que passaram por universidades com os olhos frios e radiantes
alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake
entre os estudiosos da guerra,
que foram expulsos das universidades por serem loucos e publi-
carem odes obscenas nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descasca-
da em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestas
de papel, escutando o Terror através da parede,
que foram detidos em suas barbas públicas voltando por Laredo
com um cinturão de marijuana para Nova York,
que comeram fogo em hotéis mal-pintados ou beberam tereben-
tina em Paradise Alley, morreram ou flagelaram seus tor-
sos noite após noite
com sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília, álcool e cara-
lhos e intermináveis orgias,
incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem trêmula e clarão
na mente pulando nos postes dos pólos de Canadá & Pa-
terson, iluminando completamente o mundo imóvel do
Tempo intermediário, […]