No dia 19 de abril de 1506, há 508 anos, aconteceu o Massacre de Lisboa, também conhecido como Pogrom de Lisboa ou Matança da Páscoa de 1506. Neste dia, uma multidão perseguiu, violou, torturou e matou centenas de judeus, acusados de serem a causa de uma seca, fome e peste que então assolavam o país. O fato aconteceu antes do início da Inquisição e nove anos depois da conversão forçada dos judeus em Portugal, em 1497, durante o reinado de D. Manuel I.

O Massacre de Lisboa

Expulsos da Espanha pelos reis católicos em 1492, cerca de 93 mil judeus refugiaram-se em Portugal. D. Manuel I, nestes anos de “acolhida portuguesa” havia se mostrado mais tolerante com a comunidade judaica, mas, sob a pressão da Espanha, e também da Igreja Católica de Portugal, a partir de 1497, os judeus foram forçados a converter-se para não serem mais humilhados e mortos em praças públicas.

Segundo Yosef Kaplan (A Diáspora Judaico-Portuguesa: as Tribulações de um Exílio) e Jorge Martins (Portugal e os Judeus — Volume I, Dos primórdios da nacionalidade à Legislação Pombalina), o massacre dos judeus teve início no Convento de São Domingos de Lisboa, num domingo, quando os fiéis rezavam pelo fim da seca e da peste que haviam levado Portugal aos frangalhos (exceto, é claro, a corte e o clero portugueses). Foi no convento que surgiu o boato de que um fiel jurou ter visto no altar o rosto de Cristo iluminado — fenômeno que, para os católicos presentes, só poderia ser interpretado como uma mensagem de misericórdia do Messias – um milagre. Um fiel, que também participava da missa, tentou explicar que o tal milagre poderia ser apenas o reflexo da luz, mas foi calado pela multidão, que o espancou até a morte.

O sinal milagroso foi interpretado pela multidão como um aviso e isto bastou para que os judeus da cidade, que anteriormente já eram vistos com desconfiança, tornaram-se o bode expiatório. Foram três dias de massacre que se sucederam, incitados por frades dominicanos que prometiam absolvição dos pecados dos últimos 100 dias para quem matasse os “hereges”. Com o aval da Igreja, um “exército purificador” de mais de quinhentas pessoas (incluindo muitos marinheiros da Holanda e da então Zelândia) se uniu para exterminar os judeus que viviam no país.

A corte portuguesa estava instalada em Abrantes quando o massacre começou. D. Manuel I foi avisado e chegou a enviar homens para tentar pôr fim ao banho de sangue. Entretanto, mesmo algumas autoridades que foram enviadas se viram obrigadas a fugir.

Como consequência, homens, mulheres e crianças foram torturados, massacrados e queimados em fogueiras improvisadas. Os judeus foram acusados, entre outros “males”, de deicídio e de serem a causa da profunda seca e da peste que assolava o país. A matança durou três, na Semana Santa de 1506, e só terminou quando foi morto um cristão-novo (confundido com um judeu) e que era escudeiro do rei, fazendo com que as tropas reais chegassem em forte número para restaurar a ordem.

O rei penalizou os envolvidos, confiscando seus bens e os dominicanos instigadores foram condenados à morte por enforcamento. Há também indícios de que o referido Convento de São Domingos teria sido fechado durante oito anos e sabe-se que os representantes da cidade de Lisboa foram expulsos do Conselho da Coroa (equivalente ao atual Conselho de Estado), onde tinham lugar desde 1385.

Após o massacre, houve um clima crescente anti-semitismo em Portugal e se estabeleceu o Tribunal do Santo Ofício (que entrou em funcionamento em 1540, perdurando até 1821), obrigando às famílias judaicas sobreviventes a fugirem, quando não eram expulsas, do país. Seus principais destinos de refúgio eram os Países Baixos, França, Turquia e Brasil.

Mesmo expulsos da Península Ibérica, os judeus só podiam deixar Portugal mediante o pagamento de um “resgate” à Coroa. No processo de emigração, os judeus abandonavam suas propriedades ou as vendiam por preços irrisórios e viajavam apenas com a bagagem que conseguissem carregar.

O esquecimento do Progom de Lisboa

Monumento em Lisboa em homenagem aos Judeus mortos no massacre de 1506.

O Massacre acabou sendo apagado da memória coletiva: alguns livros de História fazem, no máximo, alguma referência corriqueira. No entanto, nomes como Damião de Góis, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Garcia de Resende, Salomon Ibn Verga e Samuel Usque fizeram registros do fato ou retomaram o acontecido, tornando possível um consulta às fontes históricas do massacre.

homenagem aos judeus massacre de lisboa de 1506
Monumento em Lisboa em homenagem aos Judeus mortos no massacre de 1506.

Um dos mais completos é o de Damião de Góis, no “Chronica do Felicissimo Rey D. Emanuel da Gloriosa Memória”:

No mosteiro de São Domingos existe uma capela, chamada de Jesus, e nela há um Crucifixo, em que foi então visto um sinal, a que deram foros de milagre, embora os que se encontravam na igreja julgassem o contrário. Destes, um Cristão-novo (julgou ver, somente), uma candeia acesa ao lado da imagem de Jesus. Ouvindo isto, alguns homens de baixa condição arrastaram-no pelos cabelos, para fora da igreja, e mataram-no e queimaram logo o corpo no Rossio.

Ao alvoroço acudiu muito povo a quem um frade dirigiu uma pregação incitando contra os Cristãos-novos, após o que saíram dois frades do mosteiro com um crucifixo nas mãos e gritando: “Heresia! Heresia!” Isto impressionou grande multidão de gente estrangeira, marinheiros de naus vindos da Holanda, Zelândia, Alemanha e outras paragens. Juntos mais de quinhentos, começaram a matar os Cristãos-novos que encontravam pelas ruas, e os corpos, mortos ou meio-vivos, queimavam-nos em fogueiras que acendiam na ribeira (do Tejo) e no Rossio. Na tarefa ajudavam-nos escravos e moços portugueses que, com grande diligência, acarretavam lenha e outros materiais para acender o fogo. E, nesse Domingo de Pascoela, mataram mais de quinhentas pessoas.

A esta turba de maus homens e de frades que, sem temor de Deus, andavam pelas ruas concitando o povo a tamanha crueldade, juntaram-se mais de mil homens (de Lisboa) da qualidade (social)dos (marinheiros estrangeiros), os quais, na Segunda-feira, continuaram esta maldade com maior crueza. E, por já nas ruas não acharem Cristãos-novos, foram assaltar as casas onde viviam e arrastavam-nos para as ruas, com os filhos, mulheres e filhas, e lançavam-nos de mistura, vivos e mortos, nas fogueiras, sem piedade. E era tamanha a crueldade que até executavam os meninos e (as próprias) crianças de berço, fendendo-os em pedaços ou esborrachando-os de arremesso contra as paredes. E não esqueciam de lhes saquear as casas e de roubar todo o ouro, prata e enxovais que achavam. E chegou-se a tal dissolução que (até) das (próprias) igrejas arrancavam homens, mulheres, moços e moças inocentes, despegando-os dos Sacrários, e das imagens de Nosso Senhor, de Nossa Senhora e de outros santos, a que o medo da morte os havia abraçado, e dali os arrancavam, matando-os e queimando-os fanaticamente sem temor de Deus.

Nesta (Segunda-feira), pereceram mais de mil almas, sem que, na cidade, alguém ousasse resistir, pois havia nela pouca gente visto que por causa da peste, estavam fora os mais honrados. E se os alcaides e outras justiças queriam acudir a tamanho mal, achavam tanta resistência que eram forçados a recolher-se para lhes não acontecer o mesmo que aos Cristãos-novos.

Havia, entre os portugueses encarniçados neste tão feio e inumano negócio, alguns que, pelo ódio e malquerença a Cristãos, para se vingarem deles, davam a entender aos estrangeiros que eram Cristãos-novos, e nas ruas ou em suas (próprias) casas os iam assaltar e os maltratavam, sem que se pudesse pôr cobro a semelhante desventura.

Na Terça-feira, estes danados homens prosseguiram em sua maldade, mas não tanto como nos dias anteriores; já não achavam quem matar, pois todos os Cristãos-novos, escapados desta fúria, foram postos a salvo por pessoas honradas e piedosas, (contudo) sem poderem evitar que perecessem mais de mil e novecentas criaturas.

Na tarde daquele dia, acudiram à cidade o Regedor Aires da Silva e o Governador Dom Álvaro de Castro, com a gente que puderam juntar, mas (tudo) já estava quase acabado. Deram a notícia a el-Rei, na vila de Avis, (o qual) logo enviou o Prior do Crato e Dom Diogo Lopo, Barão de Alvito, com poderes especiais para castigarem os culpados. Muitos deles foram presos e enforcados por justiça, principalmente os portugueses, porque os estrangeiros, com os roubos e despojo, acolheram-se às suas naus e seguiram nelas cada qual o seu destino. (Quanto) aos dois frades, que andaram com o Crucifixo pela cidade, tiraram-lhes as ordens e, por sentença, foram queimados.