Obra da fase final do pintor holandês Vincent Van Gogh e talvez uma das mais icônicas do artista, A Noite Estrelada é sem sombra de dúvida um dos quadros mais famosos no mundo da pintura. Tida por muitos como uma visão extravagante e submersa no misticismo, uma representação pós-impressionista em comunhão com as forças celestes, no entanto, surgem outras interpretações sobre esta – e outras – obras de Van Gogh que o postulam como um artista com engajamentos científicos além dos filosóficos e sociais – e não obstante consciente dos padrões de representação de sua época.
Essa guinada nas interpretações das obras do artista começou quando o então professor de História da Arte da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, Albert Boime, e o diretor do Observatório Griffith, E. C. Krupp, recriaram o céu pintado por Van Gogh em A Noite Estrelada, revelando reflexões inesperadas do artista.
A Noite Estrelada
A Noite Estrelada foi concluído num período conturbado da vida do pintor. Entusiasmado com o midi francês de Degas e Tolouse-Lautrec, Van Gogh seguiu para o Arles (onde se encontraria muitas vezes com Paul Gauguin, com quem teve uma conturbada amizade), uma pequena cidade próxima da foz do Ródano e de Marselha, no sul da França. Lá iniciou um período de intensa produção artística e em apenas 15 meses (entre 1888 e 1889) havia completado 200 quadros e mais de 100 desenhos. Em maio de 1889 viria a acontecer o famoso episódio que o levaria a dilacerar uma de suas orelhas.
Em 19 de junho de 1889, da janela do asilo de Saint-Rémy-em-Provence, Van Gogh finalizou a A Noite Estrelada. Foi através da reconstrução do céu para esse mesmo local e data que Boime conseguiu determinar o momento extado da pintura: quatro da manhã da noite do dia 18 para o 19. Na obra, pautando-se na reconstrução do céu daquela noite, foram identificados alguns objetos: a Lua se sobressai ao lado direito do quadro; junto ao horizonte, à direita do cipreste, pode-se visualizar Vênus, que então aparecia como a estrela da manhã. Ainda à direita, mas agora no topo do cipreste, aparece a formação triangular de estrelas da constelação de Carneiro (ou Áries), que aliás era o signo de Van Gogh.
Essa interpretação do quadro parece solucionar de alguma maneira uma das maiores controvérsias entre os críticos de arte a respeito da tela: a representação da Lua. Muitos atribuem à ela uma papel simbólico como representante da luz, uma espécie de fusão entre Lua e Sol, colocado de maneira arbitrária pelo artista. Mas, para Boime e Krupp, a representação da Lua na tela coincide com a posição do satélite naquela noite. Na pintura, a Lua estava em quarto decrescente, iniciando a fase onde ganha a forma de uma fina borda luminosa que precede a Lua Nova.
Um olhar astronômico sobre a obra
Vênus também aparece com imenso destaque, certamente justificado pelo brilho intenso do planeta quando observado por Van Gogh. À época, Vênus era tido como a estrela da manhã, pois se fazia visível perto do amanhecer. No quadro, Vênus é mais brilhante do que qualquer outro planeta ou estrela, devido ao intenso brilho que ela apresentava no dia. “Esta manhã, observei o campo pela minha janela por um longo período antes de o Sol nascer, apenas com a estrela da manhã, que estava muito grande”, escreveu o pintor ao seu irmão Theo, algumas semanas antes de finalizar a pintura.
Outro dado interessante, sobre as representações do céu de Van Gogh, é que o pintor era admirador do astrônomo Camille Flammarion, um grande divulgador da astronomia na época. Flammarion chamava a atenção para as diferentes cores das estrelas e sua publicação Astronomie Populaire trazia diversas gravuras onde as estrelas eram representadas em diferentes cores e diferentes tamanhos, como se essa ampliação chamasse a atenção para a diferença entre elas. Van Gogh tinha acepções semelhantes e, em setembro de 1888, dizia o artista em carta à sua irmã que “algumas estrelas são amarelo de limão, outras têm um brilho rosáceo, outras um verde ou azul ou brilho de miosótis. É evidente que não basta pintar pequenos pontos brancos num fundo azul escuro”. E é isso que parece acontecer n’A Noite Estrelada.
Nesse sentido, talvez se possa dizer que as estrelas de Van Gogh são mais realistas do que a de outros artistas seus contemporâneos. A forma como as representava era uma escolha consciente de um movimento artístico do qual estava sob a influência, o que não diminui em nenhum grau sua percepção do referencial real: neste caso, o céu.
Até mesmo a espiral que atravessa o céu na tela pode ter sua origem nas descobertas científicas da época. O crítico Meyer Shapiro, autor da biografia do pintor, sugere que Van Gogh tenha representado estas espirais devido à influência científica. Esses objetos celestes (as espirais) foram documentados pela primeira vez em 1880 e, assim, gravuras dessas nebulosas apareciam frequentemente na imprensa e na literatura, como nas revistas Harper’s e Astronomie Populaire, leituras frequentes do pintor.
O resultado disso tudo, na tela, é uma pintura que parece estar animada, rodando num turbilhão cósmico. Esse movimento contagia até mesmo a paisagem terrestre: as montanhas parecem movimentar-se e transmitir esse movimento para as árvores e ao cipreste. Um espetáculo de maestria do pintor, cheio de curiosidades e consciência.
Fonte de pesquisa: Revista Expresso, Ed. 1325
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