Seção de Manuscritos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. É lá que se encontra um enigmático documento, que despertou a curiosidade de muitos intelectuais e exploradores, mas de nome simplório: Manuscrito 512 (ou Documento 512). O documento, de autoria desconhecida, é um relato, datado de 1753, acerca de uma grande cidade abandonada no sertão da Bahia, então descoberta após anos de incessante busca bandeirante por minas de prata na região (soa similar à Ratanabá?).

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Apesar de ser datado de 19753, a descoberta do documento só aconteceu 86 anos depois de sua feitura, em 1839. O manuscrito foi encontrado abandonado, ao acaso, na então biblioteca da corte – hoje a Biblioteca Nacional. O responsável pela descoberta foi Manoel Ferreira Lagos, que encaminhou o documento em seguida ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Foi sob posse do IHGB que o manuscrito começou a causar rebuliço: uma cópia integral do manuscrito foi publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com o prefácio do cônego Januário da Cunha Barbosa, onde relatava uma suposta ligação do relato coma a história de Robério Dias, que teria sido preso pela coroa portuguesa por não revelar a localização de minas de metais preciosos que ele houvera supostamente encontrado no interior da Bahia.

Num momento histórico marcado pela busca da identidade nacional – que, aliás, perduraria ainda muitos anos, especialmente na literatura –, o documento despertou um grande interesse após sua publicação. Os interessados na cidade relatada no manuscrito eram os mais diversos, desde aventureiros, homens em busca de fortuna, intelectuais e religiosos, até o imperador Dom Pedro II. A partir daí, o Manuscrito 512 passou a fazer parte dos debates históricos brasileiros e, como não poderia deixar de ser, era defendido por uns e renegado por outros, mas o que prevaleceu – ao menos à época – foi a ligação com o antigo bandeira, Robério Dias.

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O mito do manuscrito 512

página do manuscrito 512

No subtítulo “Relação”, do prefácio publicado junto ao documento, é estabelecida a ligação entre o relato e a busca das minas de prata de Muribeca. Durante muitos anos, após ter encontrado a tal cidade ancestral, Robério Dias teria explorado aquelas minas com gana, tornando-se um dos homens mais ricos da Bahia. Incontestavelmente rico, faltava a Robério, no entanto, um título de nobreza. O antigo bandeira era mestiço e a falta de algum título que o enobreceria o incomodava. Assim, encontra-se com Pedro II de Portugal e oferece ao imperador parte de suas minas em troca do título de Marquês. Pedro aceitou a proposta e deu instruções para que as autoridades baianas recebessem a localização das minas. No entanto, nenhuma das partes estava interessada em ceder no acordo. O imperador tomaria as minas e não deixaria título algum a Robério que, por sua parte, descobriu as intenções do monarca no decorrer do processo e se recusou a revelar a localização de Muribeca. Robério seria mantido em cárcere pela coroa durante 2 anos e os índios que o acompanhavam foram brutalmente torturados, mas ainda assim a localização não fora revelada por nenhum deles.

Não se sabe se foram verdadeiras as minas de Muribeca, mas o que fazia com que se acreditasse ainda mais na veracidade da estória era a estrutura e a forma encontradas no relato. A expedição é quase anulada de elementos fantásticos, típicos dos relatos quinhentistas sobre o Eldorado amazônico. Não havia seres extraordinários, nem uma paisagem onde o maravilhoso parecia querer moldar alguma realidade.

O relato se inicia com a chegada à uma montanha brilhante, por conta da existência de cristais. Os bandeirantes, no entanto, estagnaram, incapazes de escalar a formação. A solução viria depois, quando um escravo que era levado com a expedição encontrou um caminho calçado por dentro da montanha, que acabaria por levar a expedição ao cume. De lá, foi possível observar uma “povoação grande, persuadindo-nos pelo dilatado da figura ser alguma cidade da Costa do Brazil”. A cidade estava despovoada e o acesso era por um caminho de pedras. A entrada era composta por “tres arcos de grande altura, o do meio he maior, e os dous dos lados são mais pequenos: sobre o grande, e principal devizamos Letras que se não poderão copiar pela grande altura”. As casas eram simétricas, o que as faziam parecer “huma só propriedade de cazas, sendo em realidade muitas, e algumas com seus terrados descobertos, e sem telha, porque os tectos são de ladrilho requeimado huns, e de lages outros”. Ainda havia na cidade algo como uma praça, com uma

[…] collumna de pedra preta de grandeza extraordinária, e sobre ella huma Estatua de homem ordinário, com huma mão na ilharga esquerda, e o braço direito estendido, mostrando com o dedo index ao Polo do Norte; em cada canto da dita Praça está uma Agulha, a imitação das que uzavão os Romanos, mas algumas já maltratados, e partidos como feridas de alguns raios.

Na cidade, segundo o manuscrito, havia ainda uma “figura de meio relevo talhada da mesma pedra, e despida da cintura para cima, coroada de louro” e também uma grande moeda de ouro com “a imagem, ou figura de hum moço posto de Joelhos, e da outra parte hum arco, huma coroa, e huma sétta”. O manuscrito original teria sido originado após chegarem à região entre os rios Paraguaçu e Uma, onde os bandeiras enviaram uma carta ao Rio de Janeiro com o relato.

Controvérsias sobre o manuscrito 512

três páginas do manuscrito 512

Não é difícil observar, ainda que com a transcrição de apenas alguns trechos, que a descrição das ruínas não estão emparelhadas com os modelos urbanísticos coloniais de Portugal e Espanha, ou mesmo com as culturas indígenas amazônicas e/ou andinas. Assim, a possibilidade de aquelas serem ruínas de algum povoado, ou algum centro minerador colonial, parece improvável. Mas é fácil perceber que a descrições das inscrições nos arcos, os próprios arcos, e as estátuas nos remetem diretamente à paisagem urbanística mediterrânea clássica, com Grécia e Roma como expoentes maiores. As descrições então parecem claramente imaginárias, ficção, o que acaba suscitando outra problemática: como aqueles bandeiras teriam estabelecido contato com aqueles modelos de construção mediterrânea? Estátuas com coroa de louros, moedas de ouro e arcos. Tudo parece indicar que o relato, ou o produtor deste relato, estava profundamente inserido no contexto das descobertas arqueológicas e culturais realizadas na Europa no século XVII.

O pesquisador italiano Gabriel D’Annunzio Baraldi, autor do livro A Descoberta Doc.512, propõe na obra um autoria dupla para o manuscrito e que sua origem remontaria ao ano de 1553. Dessa maneira, o documento teria sido concebido por um copista da Companhia de Jesus e sofrido inúmeras alterações até chegar à forma na qual foi encontrado. O argumento de Baraldi gira em torno da necessidade daquele documento como forma de reiterar as bandeiras e a exploração do interior do Brasil. Para bagunçar ainda mais as coisas, Baraldi não tem nenhuma formação em arqueologia (formou-se Bacharel em Filosofia e Letras em Buenos Aires) e afirmou, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo de 17 de julho de 1983, que a cidade perdida de Atlântida estaria escondida sob o estado do Piauí.

Verdade ou ficção, o manuscrito é certamente intrigante e capaz de despertar a nossa curiosidade até hoje. Na literatura, temas parecidos foram trabalhados em obras como Quarup e A Expedição Montaigne, de Antônio Callado, assim como na literatura indianista desde Padre Anchieta, passando por José de Alencar e Gonçalves Dias. Eram os primeiros passos em busca de desvendar o então exótico e desconhecido Brasil de dentro. Controvérsias à parte, o mito que gira em torno do Manuscrito certamente é um pedaço da história brasileira interessante de se conhecer.

Ainda curioso? Existe para download um dossiê sobre o documento, o Dossiê do manuscrito encontrado na Biblioteca Nacional-RJ, Divisão de Manuscritos, elaborado pelo pesquisador Abdias Flauber Dias Barros e que traz, além de estudos posteriores sobre o relato, a transcrição completa do documento original.