Um cheiro insuportável alcançou sua narina […] foi surpreendida pelo odor fétido, vindo do interior do prédio. Nem tinha se refeito de tamanho mal-estar, quando avistou montes de capim espalhados pelo chão. Junto ao mato havia seres humanos esquálidos. Duzentos e oitenta homens, a maioria nu, rastejavam pelo assoalho branco com tozetos pretos em meio à imundície do esgoto aberto que cruzava todo o pavilhão […] Tentou evitar pisar naqueles seres desfigurados, mas eram tantos, que não havia como desviar […] avistou num canto da ala um cadáver misturado entre os vivos […] o décimo sexto naquele dia.

O cenário descrito pelo trecho nos remete aos campos de concentração da II Guerra Mundial, como o campo de Buchenwald, no leste da Alemanha, que matou cerca de 56 mil prisioneiros. A narração acima, porém, se passa bem longe de lá e do contexto da segunda grande guerra: o local descrito é o Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, que chega a ultrapassar a brutalidade do campo nazista com mais de 60 mil mortos.

Criado em 1903, o Hospital Colônia foi o primeiro do estado de Minas Gerais – Barbacena já chegou a ter 7 manicômios instalados na cidade – e foi referência no meio durante 30 anos, o que acabou por atrair mais pacientes. No entanto, a grande maioria dos novos internos que chegavam ao hospital nunca deveria ter parado lá. Cerca de 70% dos internos não tinham nenhuma doença mental diagnosticada, eles eram homossexuais, epiléticos, tuberculosos, alcoólatras, prostitutas, rebeldes ou pessoas que se tornavam inimigas do poder político e econômico. Eram filhas de fazendeiros que perdiam a virgindade antes do casamento, meninas violentadas pelos patrões – e muitas delas grávidas –, homens e mulheres que tinham perdido seus documentos, pessoas simplesmente tímidas e até mesmo crianças.

Foto: Divulgação/Luiz Alfredo/Revista O Cruzeiro
Foto: Divulgação/Luiz Alfredo/Revista O Cruzeiro

Em 1966, o número de internos do hospital já era de 5 mil, número que nunca fora acompanhado pelos recursos que a instituição recebia – a capacidade, na época, era de apenas 200 internos. Os internos viviam em condições sub-humanas. A higiene pessoal e coletiva não existia: os pacientes faziam suas necessidades em qualquer pavilhão, no chão, nos capins em que dormiam e, movidos pelo desespero, em momentos de fome e sede insuportável – o que acontecia sempre em Barbacena, já que o alimento era racionado pelo governo – ingeriam as próprias necessidades. Em dias muito quentes, o esgoto era uma opção para aqueles que queriam saciar a sede e refrescar-se do calor. Os pacientes eram deixados no pátio cimentado, sendo levados às oito horas da manhã e só retirados de lá às oito da noite. Eram esquecidos, muitas vezes eram deixado sem roupa (roupas que, quando havia, eram trapos azulados), rodeados por ratos e insetos. Passavam frio, Barbacena é conhecida por seus invernos de frio intenso. Todos eles dormiam juntos, sem privacidade, em capins amontoados, cheirando a fezes e urina – quando algum interno fazia suas necessidades, o capim era apenas lavado e colocado no sol para secar e voltar às camas. As camas também eram insuficientes, assim como eram os médicos e os medicamentos: os enfermos seguiam definhando até a morte.

A essa altura Barbacena já tinha recebido a alcunha de “cidade dos loucos” e merecido a atenção de nomes como o do escritor mineiro Guimarães Rosa e do filósofo francês Michel Foucault. Foucault, autor de História da Loucura (1961), participou de um ciclo de palestras e congressos em Minas Gerais que acabariam por aumentar os esforços para fechar o Hospital Colônia. Já Guimarães Rosa cunhou a expressão “trem louco” para designar os trens carregados de pessoas prestes a serem internadas em Barbacena. Rosa, que era médico e viveu na cidade durante os anos 1930, faz referência ao trem que cruzava o país e levava ao hospício em seu conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, da obra Primeiras Estórias (1962):

Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso dai de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre.

Devido à condição inumana do hospício, a média de mortes por dia era de pelo menos 16 internos, o que criava uma problemática com o acúmulo de corpos. A “solução” encontrada foi a venda ilegal de corpos para universidades: cerca de 17 universidades do país foram responsáveis pela compra de pelo menos 1850 corpos para abastecer seus cursos de medicina. Somente a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi responsável pela compra de mais de 500 desses corpos, que eram comercializados por cerca de 50 cruzeiros cada um (cerca de 200 reais). Ainda assim, quando não havia compradores suficientes, os corpos eram decompostos ali mesmo, no pátio do hospício, às vistas de outros internos.

Foto: Divulgação/Luiz Alfredo/Revista O Cruzeiro
Foto: Divulgação/Luiz Alfredo/Revista O Cruzeiro

Essa é a realidade contada pelo livro Holocausto Brasileiro (2011), da jornalista Daniela Arbex. A obra também traz a história de funcionários que lá trabalharam e de alguns internos sobreviventes do Colônia, que começou a experimentar uma mudança – lenta – em sua realidade apenas a partir dos anos 1980 e até seu fechamento. Ainda nos anos 1960 começaram as denúncias sobre a realidade brutal que assolava a instituições e a revista O Cruzeiro publicou uma matéria que denunciava a situação e trazia fotos que chocaram o país na época, mas o caso logo cairia no esquecimento. Apenas 20 anos depois, com esforços e denúncias realizadas por profissionais ligados à psiquiatria e também pela imprensa, é que foi possível iniciar um processo de mudança que resultaria no fim da instituição. Em 1979, o filme Em nome da razão – Um filme sobre os porões da loucurade Helvécio Ratton trouxe à tona, pela primeira vez em vídeo, os horrores vivenciados no interior do hospital.