Se existem obras que sempre estão nas listas dos mais concorridos vestibulares brasileiros, pode-se afirmar que as obras de Machado de Assis estão sempre nestas listas. A despeito de Dom Casmurro ser – disparado – a mais conhecida obra do autor entre os leitores que estão deixando o ensino médio, neste texto trataremos de duas obras – que não menos estão presentes nestas listas – e um elemento que ora as afasta, ora as aproxima: o narrador em Memórias Póstumas de Brás Cubas e em Quincas Borba.

O narrador Machadiano

O narrador em Quincas Borba está em terceira pessoa (ou é heterodiegético), recurso que não é muito comum aos narradores de Machado de Assis.  Bom, é interessante notar que ao se passar de um narrador em primeira pessoa para um narrador em terceira pessoa, há um afastamento entre o narrador e as personagens, o narrador e o objeto narrado, e isto será um dos pontos chaves do narrador em Quincas Borba, pois a despeito deste distanciamento, o narrador incorporará recursos, como o discurso indireto livre, para se alinhar ao estilo dos narradores machadianos.

Contrariamente a este tipo de narrador, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, temos um narrador personagem, em primeira pessoa (autodiegético). Brás Cubas é um narrador agressivo, que a todo o momento interpela o leitor e comunica-se quase que de forma impiedosa com quem está lendo. Para que isso seja possível, o narrador – Brás Cubas – contará sua história a partir de um não-lugar, afinal está morto, podendo assim agir de maneira que não haja nenhum impedimento especialmente moral em sua narração: esta se daria sem algumas barreiras e/ou laços de valores mundanos, por assim dizer.

O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus. (Ao Leitor, Memórias Póstumas de Brás Cubas)

Apesar destas diferenças, assim como Brás Cubas, o narrador em Quincas Borba é também extremamente agressivo. Ele orienta e interfere na leitura a todo o momento, tal como a maioria dos narradores Machadianos e sua “pedagogia do leitor”, de maneira até a possibilitar uma leitura pretendida da obra. Mas, ao contrário de Brás Cubas, em Quincas Borba o narrador não está morto e também não é personagem do enredo, mas ainda sim encontra a artimanha de isolar-se quase que naquele mesmo não-lugar das memórias póstumas, de maneira a manter certa permissividade à sua intransigência e agressividade. Mas como? Simples: o narrador heterodiegético se afasta das personagens, ainda que sem se afastar do enredo, pela consciência que tem deste (onisciência, em Quincas Borba), e pode continuar a ser um “narrador com temperamento em sua essência” sem que isso seja necessariamente uma característica constitutiva da personagem – o que acontece quando o narrador é a personagem que conta sua história, por exemplo.

E enquanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monótono, tudo rindo, cansativo; mas uma boa distribuição de lágrimas e polcas, soluços e sarabandas, acaba por trazer à alma do mundo a variedade necessária, e faz-se o equilíbrio da vida. (Capítulo 45, Quincas Borba)

Ao se afastar assim das personagens, o narrador pode interpelar o leitor e também as personagens a todo o momento, da mesma maneira ácida e irônica que já fazia o póstumo Brás Cubas – que, aliás, lembremos, era amigo de infância de Quincas– sem que lhe ponham tantos limites morais, ou que o leitor tome por outro viés a história da personagem através da índole do narrador.

Por outro lado, esse afastamento que Machado produziu no narrador de Quincas Borba, também serve para demonstrar justamente a ingenuidade da personagem principal, Rubião. O narrador irá contar a história do malfadado professor de Barbacena, que tem sua ascensão devida a uma herança recebida do falecido amigo Quincas Borba e que passa a viver na corte acabando por degradar-se e pagar o preço da ostentação do capitalismo selvagem, presente na sociedade (e ainda hoje) retratada – ainda que alegoricamente – na obra.

O narrador como mediador da verdade

Rubião é enganado a todo o momento e deveras não desconfia disso. Enriqueceu a todos os seus amigos que fizera na corte, todo o seu circulo social se alimentava dele que, afinal, ainda era o mesmo malfadado professorzinho de Barbacena e que, no entanto, passara a administrar larga fortuna. Fica claro que aos amigos interessavam justamente a sua fortuna, pois Rubião era o mesmo bronco que há pouco saíra do interior de Minas Gerais para a capital fluminense. Mas, no decorrer da narrativa, tais ambições de seu círculo social talvez não sejam notadas assim de maneira tão clara. Nota-se sim, que se rende aos amores de Sofia e que, a partir deste momento, passa a dedicar à ela cada hora de seu dia – afinal, vivia o Rubião no ócio da vida abastada. Mas não se dá logo de cara que Palha, ao saber dos amores de Rubião por Sofia, explora tal sentimento como também como condiciona a mulher a alimentar Rubião de esperança, de modo a manter a amizade e, por fim, assegurar para si o dinheiro de Rubião.

Note que, se fosse Rubião que narrasse sua história, para que pudéssemos notar tais desfechos nas entrelinhas da obra, ele teria de ser consciente da sua ingenuidade, e na obra ele não o é, o que mudaria completamente o sentido da obra. Portanto, o narrador em terceira pessoa tem justamente este papel: o de afastar-se da consciência da personagem. Sem esse dado, a constituição do Rubião, tal como ele é apresentado no livro, não seria possível, pois se soubesse que era enganado por quase todos os outros, a personalidade do personagem não seria a mesma e por certo que o mesmo enredo e desfecho seriam improváveis.

É assim que o narrador mostra a vida de Rubião, desfrutando os prazeres da vida abastada e dos círculos sociais estimados, muitas vezes com gosto, outras com desgosto – assim como acontece em qualquer experiência/vivência humana. Mas nunca, nunca Rubião soube da maneira em que vivia e na trama que estava inserido. Talvez soubesse quando, quase ao fim de sua história, começa a tornar-se outro, mais astuto que o rapaz do interior, mas não há tempo: a loucura chega e o arrebata subitamente.

Concluindo: a narração travessa de Machado de Assis

Rubião e Sofia, por Eduardo Schloesser, 2011.
Rubião e Sofia, por Eduardo Schloesser, 2011.

O narrador, como pode ser visto, é o intermediador entre o leitor e a verdade. É ele quem tratará de concedê-la ao leitor em doses minuciosamente calculadas e ainda permeadas de truques, “mentiresas”, que minam o caminho do leitor.

Numa análise mais profunda, nota-se que o narrador engana o leitor, assim como Rubião é enganado por seu círculo social. O capítulo 106 é a mostra mais clara disso. O narrador, até então permeou a obra com dicas, suposições, de modo a alimentar a suspeita do caso entre Sofia e Carlos Maria. Assim, atribui ao leitor e a Rubião a culpa por terem seguido tal pensamento, eximindo-se de qualquer culpa pelos fatos narrados. Lembremo-nos que, no início da obra, o narrador adverte que o leitor deverá realizar uma leitura atenta de todos os pormenores, e aqui o acusa de não seguir seu conselho.

Dessa maneira, forma-se quase um paralelo entre a ingenuidade do leitor em acreditar no narrador, que na verdade foi quem o levou a tal conclusão do episódio, e também Rubião na trama do ciúme. Rubião não dá atenção aos pormenores porque está justamente ligado à tensão que propicia seu amor por Sofia. Não nota o enriquecimento e o prosperar de Palha, não nota que Camacho o enche de bajulações a troco de sua fortuna, tampouco que seus convivas, aparentemente interessados na filosofia que supostamente Quincas Borba haveria transmitido a seu aprendiz, sugam sua fortuna em troca de certo aconchego social. São parasitas, como Machado certamente gostava de chamá-los.

Outro recurso interessante utilizado pelo narrador é a aproximação do leitor. Ao contrário de Brás Cubas, aqui o narrador não se utilizará de palavras de baixo calão ou que remetem a baixeza. Ele tratará bem o leitor: “meu caro”, “minha senhora”, “meu senhor”, etc. Mas isto não quer dizer que ele seja menos duro, pelo contrário, a rispidez e a agressividade do narrador aqui se dão pela sutileza; ele encherá o leitor de elogios para, em determinados momentos, tomar as rédeas da narração de maneira brutal e tirar sua razão, virar seu mundo ao avesso e sempre de maneira intransigente e ríspida. A maneira de narrar condiz com o livro que é, num todo, preenchido de ironia. Um retrato irônico do Brasil colonial, de suas classes sociais, de sua política, economia e de seus representantes.

Assim, finalizo com uma constatação do crítico Hélio de Seixas Guimarães: “Completa-se assim o procedimento básico do narrador de Quincas Borba: apresentar-se confiável e generoso nos conselhos apenas para agravar a acusação de incompetência do seu interlocutor, incapaz até mesmo de aplicar os procedimentos que lhe foram sugeridos pelo narrador”.  Portanto, leitor, cuidado.

Obras de Machado de Assis no cinema

As duas obras de Machado de Assis ganharam adaptações para o cinema. Quincas Borba, de 1987, foi adaptado e dirigido por Roberto Santos e conta com nomes como Laura Cardoso, Paulo Villaça e Walter Forster no elenco. Já a obra Memórias Póstumas de Brás Cubas ganhou duas adaptações: Brás Cubas (1985) e Memórias Póstumas (2001). O longa de 1985 foi adaptado por Antônio Medina e dirigido por Júlio Bressane e conta com Luiz Fernando Guimarães e Regina Casé no elenco.

Já o filme de 2001 teve o texto adaptado por José Roberto Torero e foi dirigido por André Klotzel. O longa é uma parceria luso-brasileira e conta com Reginaldo Faria, Marcos Caruso, Sonia Braga, Otávio Muller e Walmor Chagas no elenco. Confira os filmes completos (disponíveis no Youtube):

Quincas Borba – 1987

Brás Cubas – 1985