Com a permissão do governo chileno, em 1889 onze selk’nam – incluindo um com 8 anos de idade – foram levados para a Europa para serem exibidos como animais. Os índios da Patagônia eram uma raridade. Assim os trataram. Assim morreram.

Às vezes prometiam aos indígenas aventuras, outras eram simplesmente tirados de sua terra sem nenhuma promessa. Da fria costa de Magalhães, os galeões navegaram, no início do século XIX, para o Velho Mundo com uma carga bastante cobiçada: dezenas aborígenes para serem exibidos em parques, feiras e museus. Em nome da ciência e do progresso, os embarques foram autorizadas pelo Estado do Chile.

Esse foi o destino, entre 1878 e 1900, de três grupos de indígenas pertencentes às etnias Tehuelche, Selk’nam e Kawésqar. Fotografados, medidos e obrigados a atuar em público, muitos deles não conseguiram voltar para sua terra, de onde foram arrancados.

Vítimas do imaginário e do preconceito

A ideia era promover ainda mais o Zoológico como entretenimento, uma mina de ouro no final do século XVIII. Patenteando sua invenção como “Zoológicos Humanos”, o empresário alemão Carl Hagenbeck aproveitou seus contatos com o mundo científico para dedicar-se a recrutar aborígenes para estes zoológicos. Entre estes, um grupo de Tehuelches. Capturados em 1879, o grupo da Patagônia foi o primeiro a chegar à Europa. Impulsionados pelos comentários de Darwin, que na década de 1830 descreveu os fueguinos como seres “abjetos e miseráveis”, os cientistas não escondiam seu interesse em averiguar se eles eram o elo perdido da evolução entre o homem e o macaco.

Os nativos só teriam que “agir como eles mesmos”. Mas, de acordo com a imagem que se sustinha do selvagem, todos os aborígenes chilenos foram equipados com arcos, flechas, tubos e penas. O público, que pagou para vê-los cantar, tocar instrumentos ou fazer rituais, também arremessavam aos indígenas carne crua, acreditando que se tratavam de canibais. Por conta do sarampo ou da varíola, muitos morreram durante as longas navegações necessárias para se chegar à Europa.

Fontes também indicam que várias mulheres sofreram abusos por parte dos guardas, que inclusive transmitiram-nas doenças venéreas.
Depois de serem exibidos em gaiolas em Hamburgo, Berlim e Dresden, o grupo de Tehuelches retornou ao solo chileno após três meses. Com exceção dos traumas causados pelo abuso e maus tratos e dos que não resistiram às doenças transmitidas pelos brancos, não sofreram nenhum grande dano físico.

Os grupos que seriam exportados em seguida, no entanto, não tiveram a mesma sorte. Na ocasião dos 100 anos da “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”, a Exposição Universal de Paris (1889) tinha entre suas atrações novíssima e charmosa Torre Eiffel e uma “Aldeia Negra”, composta de 400 nativos. Onze selk’nam foram capturados pelo baleeiro belga Maurice Maître para serem exibidos na mostra, mas apenas nove sobreviveram à viagem. Uma mulher grávida e um menino chamado Calafate estavam entre os indígenas sequestrados de sua terra natal.

Por ser ainda uma criança, “tudo indica que o menino Calafate embarcou de bom grado”. Depois de serem exibidos em Paris e no Royal Aquarium de Londres, os selk’nams foram levados para o Museu de Cera da Bélgica. Enquanto isso, uma instituição cristã ameaçava soar o alarme e causar um conflito entre diplomatas e associações humanitárias se não enviassem o grupo de volta ao Chile. Assim, apesar do grupo ter retornado, sob os cuidados de um guarda chileno que vinha da Tierra Del Fuego (hoje nas proximidades de Ushuaia, na Argentina), Calafate permaneceu na Europa durante cerca de um ano.

Os arquivos salesianos de Roma puderam revelar o paradeiro de Calafate aos pesquisadores: acompanhado por um sacerdote, ele voltou para Punta Arenas, no Chile. Outro documento, um artigo publicado no jornal El Magallanes, também se referia à volta da criança, mas sem mencionar sua passagem pelos Zoológicos Humanos.

Em 2002, o historiador chileno Christian Baez e seu colega inglês, Peter Mason, encontraram uma série de fotografias de índios do extremo sul da América expostas em Paris e outras capitais da Europa intituladas de “Zoológicos Humanos” e datadas da década de 1880. Quatro anos depois da descoberta, publicaram o livro Zoológicos Humanos: Fotografías de fueguinos y mapuche en el Jardín d’Acclimatation de París, siglo XIX (Editorial Pehuén, Santiago), com mais de cinquenta imagens encontradas durante a pesquisa.

Posteriormente, decidiram também realizar um filme chamado Calafate. O filme leva o nome da criança selk’nam de oito anos que ficou em solo europeu durante cerca de um ano, mas também é uma homenagem à descoberta de cinco esqueletos kawésqar no departamento de antropologia da Universidade de Zurique, na Suíça. Graças a uma extensa pesquisa e esforço, foi possível repatriar os esqueletos dos kawésqsar encontrados na Europa.

Regresso Tardio

As ossadas de Hendrich, Lise, Capitano, sua esposa Piskouna e seu filho Greth – de acordo com os nomes que foram dados aos indígenas por seus captores – foram transferidas para Punta Arenas, onde foi realizado um ato de reparação histórica. Em janeiro de 2010, as ossadas foram levadas para a ilha de Karukinka, na Tierra del Fuego (nas proximidades de Ushuaia, mais de 100 quilômetros ao sul de Punta Arenas), onde se realizou uma cerimônia fúnebre muito íntima, na qual os membros da comunidade kawésqar os deixaram oferendas em cestos de junco enterrados em suas covas, como manda a tradição daquele povo.

Nota: Calafate também dá nome à uma cidade patagônica da província de Santa Cruz, na Argentina. Hoje o destino é muito procurado por suas belezas naturais e há pouco de sua história. No entanto, em Ushuaia, também na Argentina, há uma série de museus e exposições que contam a história e a trajetória dos povos ancestrais patagônicos.